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De Angola a Nova York: caminhos pelo UNFPA

  • Ralph Hakkert
  • 9 de set.
  • 4 min de leitura

Série: Minha História nas Nações Unidas

Setembro / 2025


Confesso que escrever sobre a minha história pessoal com as Nações Unidas é mais complicado do que seria para a maioria dos colegas, pois é uma história um pouco contraditória.


Do ponto de vista puramente pessoal, da ONU como empregadora e das relações com os colegas, o saldo foi muito positivo. Embora tenha passado por dois episódios delicados, em que perdi ou estive prestes a perder o emprego, na contabilidade final sinto que tive muita sorte por ter tido a oportunidade de servir na organização por 23 anos. Também tive a sorte de trabalhar com bons colegas, num clima de respeito e apoio mútuo que, em mais de uma ocasião, me beneficiou enormemente. Foram essas circunstâncias que me mantiveram dentro da organização, mesmo quando tinha dúvidas sobre os rumos da minha agência, que muitas vezes me faziam sentir como um dissidente dentro dela – claro, um dissidente muito bem tratado, mas ainda assim uma voz contrária.


Treinamento sobre políticas para potencializar o dividendo demográfico na África Ocidental, Mauritânia, 2018 
Treinamento sobre políticas para potencializar o dividendo demográfico na África Ocidental, Mauritânia, 2018 

Entrei na organização em 1990. Na época, era docente de demografia no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da UFMG. Entre os nossos alunos havia estudantes de Mestrado de Angola e Moçambique que estavam no CEDEPLAR com bolsas do UNFPA, como parte de projetos de reforço institucional do planejamento e dos estudos de população em seus respectivos países. Além da própria formação, eles buscavam profissionais que futuramente poderiam ajudá-los na condução desses projetos. Como eu não tinha raízes fortes no Brasil, aceitei um convite para dirigir um projeto de reforço institucional da demografia na Universidade Agostinho Neto, em Luanda, Angola. O projeto era financiado pelo UNFPA, mas administrado pelo Departamento de Cooperação Técnica e de Desenvolvimento (DTCD), que já não existe mais.


Angola e Honduras

Daria para contar muitas histórias sobre as dificuldades de trabalhar em Angola durante a guerra, mas não é o melhor lugar para isso agora. Basta dizer que, apesar das condições precárias de vida pessoal, o trabalho em si me deixava bastante satisfeito. As demandas locais eram tão grandes que mesmo contribuições modestas já pareciam fazer diferença. Poderíamos ter continuado em Angola, não fosse a descoberta de que nosso filho de dois anos apresentava sinais de autismo, condição para a qual não havia qualquer apoio disponível no país. Por isso, o DTCD providenciou minha transferência para Honduras, onde as condições de vida eram melhores.



Da esq. para a dir.:

Foto 1: Atividades de processamento do Censo de 2017, Maputo, Moçambique, 2019

Foto 2: Eu na entrada do apartamento de Lee Harvey Oswald, em Minsk, na Bielorússia, que minha colega Tatiana insistiu para eu ver

Foto 3: Reunião no Instituto Nacional de Estatística sobre a pesquisa de avaliação pós-censitária, Laos, 2015


Honduras apresentava seus próprios desafios. Embora a vida diária fosse mais simples, o clima político na Universidade Nacional Autônoma de Honduras, onde passei a dirigir um projeto semelhante ao de Angola, era de desconfiança em relação à agenda do UNFPA, especialmente por parte de grupos católicos conservadores, como o Opus Dei. O resultado foi que, em vez de apoiar a Universidade na realização de um projeto próprio, tivemos de defender a Unidade de Docência e Investigação em População contra tentativas de fechamento promovidas por essas correntes internas. Isso ocorreu em meio à Conferência do Cairo, em 1994, que acirrou os ânimos. Quando chegou a hora de decidir sobre a renovação do projeto, o UNFPA, com base em relatório de missão liderada por nosso colega George Martine, exigiu que a Universidade assumisse um compromisso mais explícito e firme com o projeto. Como isso não aconteceu, decidiu-se pelo seu encerramento, e fiquei sem emprego por quase dois anos.


Divergências

Nesse período, a Equipe de Assistência Técnica do UNFPA em Santiago do Chile, para onde George Martine também havia se transferido, me convidou a integrar o grupo. Foi em Santiago, graças às discussões técnicas da equipe, que comecei a me preocupar mais seriamente com os rumos programáticos do UNFPA. Embora não tivesse afinidade ideológica com os grupos que haviam se oposto ao Plano de Ação do Cairo, havia aspectos da agenda que me incomodavam. A conferência ampliou o foco em alguns pontos, mas estreitou em outros: migração, urbanização, políticas de desenvolvimento territorial e ambientais saíram do centro da agenda. As políticas de população se reduziram a políticas de fecundidade e passaram a ser atacadas como manipulação das liberdades individuais. E os demógrafos passaram a carregar a culpa por “se preocuparem com números em vez de pessoas”. Nada disso me parecia justo nem produtivo para a formulação de boas políticas públicas.


Reunião sobre redação de um guia para implementar políticas para potencializar o dividendo demográfico na África Ocidental, em Dakar, 2016
Reunião sobre redação de um guia para implementar políticas para potencializar o dividendo demográfico na África Ocidental, em Dakar, 2016

Apesar das divergências, me sentia bem no trabalho. Colegas e chefes próximos compartilhavam preocupações semelhantes, ou ao menos estavam dispostos a escutar. A EAT foi transferida de Santiago para a Cidade do México, onde vivi seis anos muito produtivos. Produzimos, por exemplo, um estudo sobre fecundidade adolescente que mostrou que a maioria das gravidezes era desejada pelas mães, contrariando a visão dominante. Em 2003, no entanto, Elisa, minha esposa, foi diagnosticada com câncer inicialmente considerado de alto risco, e decidimos voltar ao Brasil. O UNFPA primeiro me ofereceu a representação em Brasília, mas, diante de obstáculos, criou um projeto especial no IPEA para que eu conduzisse pesquisas sobre as Metas do Milênio em população.


O projeto terminou em 2008, em meio a uma reorganização do UNFPA, e fiquei novamente vulnerável. Mas tive sorte: um antigo colega de Santiago, recém-nomeado diretor da área de População e Desenvolvimento em Nova York, me convidou para trabalhar com ele.


Nova fase

Apesar das limitações da divisão, os anos em Nova York até minha aposentadoria, em 2014, me abriram oportunidades para conhecer o contexto demográfico de outras regiões, como Ásia e Leste Europeu. Isso resultou em muitos convites de consultoria após a aposentadoria, inclusive em lugares inesperados, como a Coreia do Norte.


Pyongyang: Eu no metrô de Pyongyang, Coreia do Norte, 2018
Pyongyang: Eu no metrô de Pyongyang, Coreia do Norte, 2018

Recentemente, aceitei revisar o relatório anual Estado Mundial da População. No entanto, ao longo do trabalho percebi que discordava de várias posições defendidas no texto. Fiz o trabalho, mas deixei observações críticas e pedi para não ser identificado por causa dessas divergências. Para minha surpresa, pediram que eu voltasse a revisar o relatório de 2026. Algumas coisas, ao que parece, não mudam mesmo.

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