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Mistura descombinada

  • Junia Puglia
  • 3 de nov.
  • 3 min de leitura

Por Junia Puglia


Imagem do documentário “O ano em que a Terra mudou”, disponível na internet. Em 15/10/2025
Imagem do documentário “O ano em que a Terra mudou”, disponível na internet. Em 15/10/2025

O documentário “O ano em que a Terra mudou”, produzido e narrado por David Attenborough, dá o que pensar e sentir. Enquanto nós, os humanos, estávamos trancados em casa, tentando nos proteger da contaminação maligna do covid, os bichos, as plantas, os rios e oceanos, assim como o ar e a atmosfera, tiveram uns bons meses de sossego. Tartarugas, baleias e macacos puderam desovar e criar filhotes em paz, sem a balbúrdia criada por nós nas praias, mares e cidades. Pinguins se aventuraram cidades adentro. Bandos de capivaras reencontraram caminhos cobertos por ruas e casas, que levavam a lugares onde em outros tempos podiam comer tranquilas. O Himalaia exibiu-se todo para os moradores de cidades da Índia, quando se dissipou a fumaceira urbana. O filme olha para tudo isto com admiração e alegria pelos efeitos benéficos de algo que tão negativamente afetou a nossa espécie.


Falo por mim. A vida ia mansa e boa. Aposentada, eu ocupava o tempo lendo, percorrendo livrarias, cozinhando, conversando e escrevendo. Os fins de tarde eram frequentemente ocupados com algum encontro, em dupla ou grupo. Ter tempo foi um objetivo muito nutrido durante as quase quatro décadas de ralação, correria, viagens e muita responsabilidade. O vazio na agenda era, portanto, celebrado e sempre acabava preenchido, de um jeito ou de outro. Viajava sem compromissos, reencontrava lugares e pessoas e achava tudo muito bom.


De repente, o apocalipse. Isolamento, semanas sem pisar do lado de fora de casa, sem ver ninguém ao vivo, só nos telas. Viajar, nem pensar. Sem falar da desgraceira, mortes, descaso, tudo que já sabemos. O ano de 2020 e boa parte de 2021 são um vazio na minha memória. Mas acabou, como sempre tudo acaba.


Porém, apesar da minha expectativa, a vida, que teima em ser dinâmica, não voltou ao que era. As relações se esgarçaram. Alguns contatos que pareciam muito cálidos caíram num vazio de resposta, coisa que não consigo entender. Retomar os encontros demandou muito esforço, e ainda demanda. Teve gente que simplesmente sumiu, assim como muitos dos lugares aonde íamos, varridos pelo esvaziamento forçado e depois “repaginados” pela gourmetização tola e pretensiosa. É que já não se pode chegar a um bar ou restaurante e simplesmente sentar. Agora são cercados e é preciso ser conduzida, informar nome, CPF e telefone. Sem falar nos cardápios, substituídos por odiosos arquivos digitais, como se imprimir algumas folhas de papel signifique a morte do negócio. Mas não, não sou de reclamar e detesto choradeira. Talvez por isto tenha gostado tanto do documentário. A pandemia teve, enfim, um efeito positivo que é muito bonito de se ver e aquece o coração. 


Achei que podia parar por aqui, trabalhar um pouco mais o que já escrevi, mas tem outro assunto fungando no meu cangote.


Há algumas semanas, andei por Lisboa. Num domingo, desci à rua logo cedo, dei alguns passos e uma música com jeito de igreja me entrou pelos ouvidos. Logo achei à fonte. Num edifício qualquer da Baixa, no miolo do centro turístico, encontrei uma sala em que uma pequena congregação cantava. Entrei e logo me senti numa realidade paralela. Falando numa língua desconhecida, um sacerdote conduzia um rito, de costas para a pequena nave onde se acomodavam talvez cinquenta pessoas em bancos de madeira.


A música ia e vinha, em mágico uníssono, mas não dos fiéis, e sim de um coro acomodado acima de nós, invisível, como percebi depois de alguns minutos de total perplexidade. E era lindo. O oficiante e o coro se revezavam em perfeita harmonia ritual. Primeiro, achei que falavam grego, depois, russo, até que saí à calçada e me dei conta de uma bandeira da Ucrânia discretamente presa a uma das portas, do lado de fora. Tornei a entrar e pensei em ir embora várias vezes, intrusa que era, mas demorou um bom tempo até que eu conseguisse de fato sair, profundamente impactada pelo que via e ouvia.


A internet me deu as primeiras pistas numa busca frenética, mas no dia seguinte voltei ao local, agora vazio. Um senhor português muito amável explicou-me que sim, eu havia presenciado uma celebração católica ucraniana de rito bizantino, numa capela católica romana cedida aos domingos para este fim.


O inesperado é sim uma das maravilhas das viagens. Este acontecimento ainda está ecoando aqui dentro. A música num registro totalmente novo para mim, os fiéis – muitos certamente expatriados da guerra, sórdida como todas – contritos, concentrados naquele momento de intensa conexão com sua terra, sua língua e seus códigos e depois a confirmação do gesto generoso e acolhedor de uma capela quase camuflada, como convém a quem busca discrição e recolhimento, em total oposição ao frenesi turístico do entorno. Inesquecível. 


Penso e repenso em separar os assuntos, mas eles não me deixam. Então, vão assim mesmo, misturados, que é como me vieram.

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