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A Dama de Copas

 

Crônica de Agop Kayayan    (ex-diretor UNICEF)

 

Sempre que penso na Audrey Hepburn me ocorre a imagem da Dama de Copas. Quando era pequeno, na minha família, nas noites de 31 de dezembro jogávamos um jogo de baralho chamado Sete e Meio ou a Dama de Copas. A tradição na família era que todos participavam com o mesmo valor fictício de fichas. Na lenda quem restava com mais fichas à meia noite, ficaria rico no ano entrante.            

 

Quando conheci a Audrey Hepburn, me lembrei do título do jogo de baralho da minha infância. Ela foi condecorada pela rainha da Inglaterra como dama. Acredito que o título foi dado a ela mais pelo trabalho humanitário que por seu sucesso no cinema.                                    

 

Conheci a Audrey Hepburn na Guatemala quando eu exercia a função de diretor de UNICEF para Centro-América. Foi uma das épocas mais tristes da história dessa Região. Três dos sete países estavam em situação de guerra civil fratricida e violenta: El Salvador, Guatemala, e Nicarágua. Na história das guerras, com o avanço do tempo, houve sempre uma proporção cada vez maior de vítimas civis. Na Primeira Guerra Mundial morreu uma proporção maior de civis que nas Guerras Napoleônicas. Da mesma maneira, na Segunda Guerra Mundial morreu uma proporção maior de civis que na Primeira Guerra Mundial. A maioria dos mortos civis foi de crianças e mulheres. O mesmo fenômeno estava acontecendo na América-Central nas décadas de oitenta e noventa. Mulheres e crianças pobres foram vítimas inocentes.

 

O Escritório Central de UNICEF em Nova Iorque tinha um departamento que cuidava das relações com os embaixadores de boa vontade de UNICEF. Foram várias personalidades, especialmente do mundo das artes e cinema que exerceram a função.  Eles eram cuidadosamente selecionados e convidados a exercer o papel de embaixador da boa vontade. Lembro-me de alguns como Sir Roger Moore, Vanessa Redgrave e Sebastião Salgado.                                                                                                                                   

O diretor do departamento me ligou um dia propondo uma visita da Audrey Hepburn. Eu não a conhecia, mas aceitei porque a visita de embaixadores atraía a atenção dos meios de comunicação. Assim podíamos aproveitar as entrevistas com TV e jornais para chamar a atenção do público e das autoridades sobre temas de importância para infância como saúde e educação.  

 

Marcamos as datas da visita com uma programação que incluía visitas a projetos, entrevistas com meios de comunicação e  com autoridades governamentais, assim como às organizações sociais com as quais tínhamos programas de cooperação.                         

 

Numa das primeiras comunicações de Nova Iorque fui informado que a Audrey Hepburn teria de ter um secador profissional de cabelo. Fiquei surpreso por tal pedido mas como bom funcionário, pedimos aos hotéis onde ela estaria hospedada para dispor de um secador profissional de cabelo no apartamento.  E me prometi de perguntar a ela, um dia, por que necessitava de um secador profissional de cabelo. De fato, numa das visitas subsequentes, quando ficamos amigos, confessei a Audrey que tinha ficado surpreso por tal pedido. Sua resposta me emocionou, ela me disse: Agop, pessoalmente não me importa tanto, mas o que me resta de beleza é meu cabelo e o arrumo nas entrevistas por causa das crianças.

 

Na minha carreira no UNICEF raramente conheci uma pessoa tão humilde como Audrey. Ela sabia que era o centro de atenções e admiração, e usava esse fato para chamar a atenção do público e das autoridades sobre os problemas enfrentados por crianças pobres. Tem uma famosa fotografia dela segurando uma criança morrendo de fome, o seu rosto mostra o tamanho da revolta de ver uma criança inocente morrendo de fome em pleno Século Vinte.

 

Entre outras atividades tínhamos marcado uma reunião com o presidente de Honduras. Eu acompanhei Audrey na entrevista, mas o presidente era tão impressionado pela presença dela, que esqueceu que eu estava na sala. Ele contava a Audrey detalhes incríveis da sua roupa e das histórias dos filmes. Eram coisas tão mínimas que nem a Audrey se lembrava bem. Mas com muito tato a um momento ela disse “senhor presidente, muito obrigada por ter-nos recebido, estou muito agradecida por sua atenção mas hoje venho conhecer sua excelência com dois chapéus: da ex-atriz Audrey Hepburn e da embaixadora da boa vontade de UNICEF”. Foi uma maneira muito elegante e diplomática de mudar o assunto da conversação e falar sobre as crianças.

Em 1991 fui transferido ao Brasil, sempre levava comigo uma fotografia da Audrey, onde ela não usava maquiagem. Ao colocar esta fotografia na minha parede, decidi enviar uma carta a Audrey dizendo como apreciava seu apoio e sua amizade. Agradeci por tudo que tinha feito em várias visitas pelas crianças de Centro-América e sugeri que viesse também ao Brasil. Umas três semanas depois recebi uma carta manuscrita me revelando que eram essas memórias de trabalho com as crianças que a mantinham viva. Não entendi bem esta última parte da mensagem. Passados uns dois meses fui informado que Audrey tinha falecido.  Seu companheiro me mandou uma fotografia dela quando criança e disse: “sei quanto vocês trabalharam pelas crianças e lhe mando essa fotografia dela na infância como lembrança da amizade de vocês”. Foi uma das vezes em que chorei no Escritório.

 

 

 

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