Série Nossa História nas Nações Unidas
Maio / 2024
Os anos passam depressa e com eles passamos nós... Vinda de Recife ao Rio com quatro meses de idade, vivi a infância em Cascadura, subúrbio carioca, e fui escolarizada em casa, como boa filha de militar. A entrada na escola revelou um mundo novo, de curiosidades e desafios, de disciplina e aprendizado e, principalmente, a porta para uma nova vida.
Amei a escola, a socialização inevitável de colegas e professores e nela descobri a minha “raison d’être” et “joie de vivre”, empenhei-me a fundo para merecer bolsas de estudo do secundário ao doutorado e, com o diploma de demógrafa de uma universidade de prestígio, enfrentei o mercado de trabalho. Meu primeiro contrato internacional foi uma consultoria para T. Paul Schultz, economista de renome da Universidade de Yale. Consistia em traçar perfis, por meio de diversas PNADS (Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar), da força de trabalho feminina. Nos seus resultados se desenhava o lugar subalterno da mulher posto em evidência por meio de vários indicadores. E aí me criei feminista chegando a dar simultaneamente aulas de Demografia e Sociologia de Gênero na Universidade de Fordham em Nova York.
Em 1988, meu marido foi convidado para assumir o posto de direção de uma empresa multinacional na Turquia. Por meio da nossa professora de turco, soube da necessidade do Çapa Hastanezi, o maior hospital de Istambul, de treinar os alunos e alunas de medicina em novos indicadores de doença que permitissem passar do atendimento ambulatorial à internação. Postulei a esta posição, ganhei o posto, consegui, em nome da causa, um bom número de computadores de mesa, montei um curso que era dado duas vezes por semana e que combinava conteúdos de epidemiologia e bioestatística e formei uma boa turma. Meditei sobre diferenças interculturais com os alunos assim como sobre sistemas de saúde e, voltando aos Estados Unidos depois de quase três anos na Turquia, apliquei a um posto de consultora na PAHO (Pan American Health Organization).
Nesta organização, trabalhei em duas divisões: Mulher e Gênero e, em seguida, Planejamento Estratégico. O trabalho na PAHO me permitiu aprofundar o conhecimento da América Central com missões na Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Belize e Honduras. Com orgulho, lembro-me do nosso trabalho na iniciativa “Salud, Puente para la Paz” que pôs fim à chamada “guerra do futebol” entre Honduras e El Salvador. Fiz também algumas missões na África: em Guiné-Bissau com o Banco Mundial e em Angola com o PNUD. E foi representando a PAHO que se abriu a porta para mudar de organização. Enviada ao Egito para a conferência preparatória de políticas de população envolvendo a América Latina, fui eleita relatora da reunião e, ao seu final, fui convidada com insistência para me candidatar a um posto mais alto na UNESCO em Paris. Nesse momento, meu marido e eu nos integrávamos à vida norte-americana, havíamos comprado uma casa que necessitava de reformas grandes e urgentes, e mudar de país era a última coisa que me vinha à cabeça; agradeci e declinei com veemência o convite.
Na noite do encerramento da conferência, Raul Urzua, colega da UNESCO, se convidou à nossa mesa, explicou o convite ao meu marido, disse que só necessitava uma cópia do meu CV naquele momento e deixou o seu cartão. Muitas conversas rolaram no meio da obra da casa, mas me mantive firme de que não era o momento para outra mudança. Com muito empenho, Steve conseguiu uma cópia do meu CV, faleceu em um acidente um dia depois e... meu mundo caiu. Cheguei a pedir demissão da PAHO, não aceita, e devagar recomecei a estruturar minha vida. Foi então que recebi um telegrama da UNESCO dizendo que estava entre as 3 finalistas para o posto e propondo datas para a entrevista. Fiquei pasma! Ignorava que o meu CV havia aterrissado lá, telefonei insistindo novamente na impossibilidade de sair diante do que me havia acontecido, mas a UNESCO postergou a entrevista até o momento em que me senti novamente viva e, dela, saí com o posto (na foto, com Vanessa Redgrave).
Trabalhar na UNESCO foi muito grato de vários pontos de vista; a sede em Paris foi, sem dúvida, um deles. Devido à multiplicidade de áreas temáticas das quais se ocupa, a UNESCO dispõe de profissionais de várias áreas que se fertilizam entre si. Aprendi muito com esses colegas. Tive três responsabilidades diferentes na Organização. Comecei pela tarefa de conceitualizar a área de políticas de população, terminei como responsável da coordenação de programas e políticas de juventude e, em 1994 e 1995, fui a chefe do escritório e coordenadora das ações da UNESCO na Bósnia-Herzegovina. É impossível descrever o que significou para mim viver este conflito e dar o melhor de mim para montar operações de reconstrução de escolas e do patrimônio material e cultural, organizar a ponte aérea que serviu de oxigênio a artistas que saíam e entravam para manter viva a chama da vida em Sarajevo e armar a operação legalizada de uma TV com entrevistas que debatiam o porquê da paz. Espero ter tocado a todos que guardo na memória e no coração e que fizeram de mim uma pessoa melhor e das Nações Unidas, combatente pela razão, dedicação e cuidado das colegas que estiveram à frente das outras quatro agências que lá operaram durante a guerra.
Há 17 anos sou parte do verde e azul da natureza de Paraty, o que me garantiu a energia para me manter ativamente voluntária com projetos em saberes e fazeres da cultura caiçara e em educação com aulas de idiomas e do projeto Escola de Comer que revolucionou a merenda escolar. Meu foco recente, entretanto, é o processo de envelhecimento e, como parte de um grupo que milita nessa área, estamos montando um projeto que discute do etarismo à institucionalização, do cuidar ao ser cuidado.